30.10.07

Revista Cinética


Garoto Cósmico, de Alê Abreu (Brasil, 2007)por Paulo Santos Lima


Sob a tenda de um circo

Na maior parte do tempo, os filmes de animação são valorizados na medida em que reproduzem “realisticamente” o mundo “real”. Esse “real”, no caso, é a própria gramática aplicada pelo cinema para construir sua diegese a partir do mundo em que vivemos. Assim, é comum que se arregale os olhos para os desenhos que conseguem simular os procedimentos concretos do exercício cinematográfico, como RatatouilleOs Incríveis eProcurando Nemo (exemplos extraordinários, topo de linha, com reproduções estilísticas complexas, de decupagem do espaço a movimentos de câmera). Essa é uma estética contemporânea dos desenhos, seguida ou não pelos cineastas do mundo de hoje, e que conta sobre conteúdos já bastante comentados outrora: amizade, lealdade, perseverança, reorganização do caos.
Nesse cenário, Garoto Cósmico desponta como uma obra bastante interessante, na medida em que o diretor Alê Abreu opta por um traço retrô. O Yellow Submarine dos Beatles, dirigido por George Dunning, é uma proximidade – ainda que o longa de Abreu seja bem mais pé no chão, comportado, longe da deliciosa e iluminada viagem ácida desse filme de 1968. Assim, Garoto Cósmico pisa no terreno do infanto-juvenil dos anos 70, quando a TV Globo, por exemplo, juntava ingredientes da fantasia monteirolobatiana de Vila Sésamo reformatados num simulacro interessantíssimo do telejornalismo com o programa Globinho, e ainda adotava o lúdico da mímica genial de Juarez Machado no Fantástico. E é com Machado que o grande personagem do filme, Giramundos, assemelha-se fisicamente.
Com o circo servindo como referência vertebral aqui, está claro que Alê Abreu traz à tela parte de sua experiência pessoal, e, claro, um universo dos anos 70 (década em que o virtual ainda era uma ficção científica) que lhe diz respeito. A história passa-se em 2973, quando todos são guiados por uma espécie deinteligentsia, um deus-máquina onipresente que conduz todas as ações humanas, numa lógica infernal (e maquinal) em que a produtividade é o objetivo supremo. Numa galáxia cujos planetas dividem maciçamente funções sob nomenclatura disfarçada – planeta da 3ª idade (os fora do mercado de trabalho), planeta dos robôs (os produtivos), planeta das crianças (o condicionamento) -, a humanidade vive em estado zumbi. Não há como dissociar esse estado de coisas de THX 1138, primeiro longa de George Lucas (dos anos 70, aliás), e Alê Abreu faz um ótimo trabalho visual, em azul e branco e reproduzindo uma dinâmica de linha de montagem opressiva (notavelmente acentuada para um filme infantil).

Nesse ambiente, há três crianças que, buscando ganhar mais pontos (ganha-se pontuação através da produtividade – o que, no caso dos pirralhinhos, é seguir a pauta dada pelo Big Brother e estudar toda uma sorte de matérias tão pouco reflexíveis quanto inúteis), acabam saindo daquele sistema. Param num planeta que parece uma laranja, meio semelhante à Terra, solar, colorido, meio Beatles, e lá conhecem Giramundos (voz de Raul Cortez), dono de um circo que apresentará à trinca um novo estar no mundo: mais sensorial, reflexivo, lúdico, pulsante. O céu torna-se um lugar de visibilidade, com nuvens tomando formas diversas. O trem da trupe circense, que é uma negação ao maquinário automatizado dos outros planetas dominados pelo vilão, tem vagões temáticos ultra-criativos, bichinhos ganham novos papéis, tudo muito divertido.

Tudo isso nos é mostrado com um desenho de traço mais “duro”, antigão, sem texturas tridimensionais ou cores esfumaçadas, o que é bem interessante. Faltou, nesse momento, uma erupção dessa experiência dos personagens, com mais delírios, mais desdobramentos do repertório abrigado pelo circo Giramundos. Fazer o universo lúdico transcender como imagem, como simulação do imaginário infantil, como cinema. Mas seria injusto não ver o filme pelo que ele apresenta ao longo de sua projeção: um grande exercício que enreda o melhor das TVs educativas, os mais recentes Glub Glub e Castelo Rá-Tim-Bum, com as colinhas, purpurinas e tal dos anos 70, a franqueza com a qual ele se aproxima de um repertório que anda escasseando, o do circo (nos créditos, é dito “um espetáculo de Alê Abreu”). Mas, que fique claro: não é por essa “função” que Garoto Cósmico é um belo desenho – um filme não tem de ter uma função, mas simplesmente ser um filme, e a função fica para o uso que cada um quiser fazer do que assistiu na sala. É que Garoto Cósmico constrói um universo mais próprio, “meta-cinematográfico”, mais mundo e sua história recente, mas despretensioso, leve. Ou seja: mais duro (no traço), mas sem perder a ternura.

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